quinta-feira, 5 de abril de 2007

TÁ TUDO TRONCHO!

INFÂNCIA
A Semana Santa, na minha época de criança, era como se fosse o período “sério” do ano. As pessoas ficavam mais introspectivas, menos expansivas, falavam mais baixo e evitavam qualquer coisa que as fizesse parecer insensíveis ou más.

PROIBIDO
Quando chegava o meio da Semana, quase nada podia. Eu não podia brigar com minha irmã, o som da tv tinha que ser mais baixo, nem todos os discos podiam ser ouvidos e até as roupas, principalmente das mulheres, parece que saiam da moda por alguns dias. Ficavam maiores, mais escuras e mais pesadas, pois elas pareciam estar carregando algo mais que o tecido e as costuras em seus corpos.

TRISTEZA
Era um clima meio triste, onde as pessoas procuravam pensar na vida. Os adultos sempre reservavam algum tempinho para conversar entre eles e com as crianças sobre o que fazia aqueles dias serem diferentes. Em alguns casos era primordial a provocação da conversa pelas próprias crianças, curiosas sobre aquela cara de “preó” dos mais velhos.

FAMILIAR
Não tive muitas perdas familiares – embora as poucas tenham sido grandes – mas estas me fizeram perceber analiticamente o que se passava a cada mês de abril. Era como se alguém da família ou muito próximo tivesse morrido. Meus pais e outros adultos com quem eu convivia agiam como se algum tio não houvesse resistido a algum mal que o tivesse atingido de forma traiçoeira e dolorosa.

AURA
Não era só na minha casa que isso era perceptível, até porque nunca fomos muito fervorosos, mas em toda a cidade, que àquela época era minha inteira concepção de mundo. Na escola, no ônibus, no supermercado, nas casas dos amigos e parentes; em todo lugar tava todo mundo meio baixo astral. Até as rádios – TODAS! – mudavam inteiramente suas programações, algumas começando na quarta e outras só na sexta, mas sempre se estendendo até o domingo.

SELEÇÃO
Aliás, era um dos pontos altos da Semana Santa a seleção musical das rádios. Sou do tempo em que rádio fm era novidade, pela qualidade do som, então era um aspecto meio mágico daquela época o rádio mais novo da casa sempre ligado sobre o banco de cimento do quintal “tocando” as mais belas – e tristes – obras da música clássica. Brahms, Wagner, Lizt, Schumann, Chopin, Prokofiev e outros ilustres desconhecidos, para mim, transportavam-me para outras épocas e lugares, enquanto tentava brincar sem fazer barulho, sem chamar a atenção e sem parecer muito alegre.

MENU
Carne, nem pensar! Frango, de jeito nenhum! Porco, jamais! Peixe, e só. Vindo, basicamente, de João Pessoa ou Boqueirão e comprado na velha feira de peixes, entrando pela Vila Nova da Rainha. Mainha e Lourdes se desdobravam para conseguir criar ou repetir naqueles cinco dias – quarta a domingo, para nós, crianças, que não fazíamos jejum – receitas que quase nunca eram preparadas no restante do ano. E sempre tinha o comentário de alguém, à mesa: - Tá muito bom. Devíamos comer peixe mais vezes!

EXCEÇÃO
A alegria da família reunida em torno dos pratos diferentes era um dos poucos momentos descontraídos da Semana Santa da minha infância. No resto do tempo eu ficava meio “amuado”, pelos cantos da casa, achando meio injusto que não pudesse extravasar minha energia acumulada graças ao feriado escolar. Mas essa era, talvez, a minha única inconformidade com aquela época especial do calendário, porque eu era plenamente consciente do que havia acontecido para provocar aquele luto.

ELE
Pensar no sacrifício, que eu não entendia porque chamavam de paixão, de Jesus naquela época me deixava triste e imaginar as “ruindades” que tinham feito me davam pena dele. Logicamente eu não fazia idéia do sentido real do que Jesus passou, mas só de pensar que eu podia ter alguma culpa por aquilo eu já ficava meio “desconfiado”, como quando algum primo apanhava da mãe por eu ter arrancado as tiras de sua “japonesa”.

PROIBIDO
Não pode isso, não pode aquilo e nem aquilo outro. A Semana Santa, eu acho, era um período de paz para os adultos, que a usavam como desculpa para fazer as crianças se aquietarem; mas, por trás dessa paz estava a oportunidade perfeita para que os casais se tratassem melhor, que os patrões ficassem menos ranzinzas, que as pessoas lembrassem dos amigos distantes e, em plena ditadura, daqueles que haviam sido “levados”, em dois sentidos.

EM RESUMO,
houve uma época, há poucos anos, em que a Semana Santa era um período especial, em que os cristãos, membros de outras religiões não cristãs e até ateus paravam para pensar um pouco na dignidade humana e nos nossos valores individuais e sociais. Afinal, não importava a qual religião pertencêssemos, ou não, tínhamos notícia de que um homem, de carne e osso, como nós, havia sido massacrado publicamente por outros homens, como nós, unicamente por tentar disseminar a paz, a harmonia e o amor entre nós.

SENTIMENTOS
Por pena, culpa, medo ou simplesmente tristeza, todos entrávamos, naquelas semanas, em um estado de permanente reflexão. Mesmo eu, que não entendia direito a moral da história, me pegava, às vezes, agindo como aquele povo do Big Brother, meio se fingindo de bonzinho, porque na Semana Santa parecia que a frase “Deus tá vendo!” tinha maximizado o seu efeito.

PÁSCOA
O final da Semana Santa, no domingo, tinha um gostinho de alívio. A gente tinha a certeza que estava tudo certo, porque, apesar da “camada de pau” que tinham dado em Jesus, de terem-no pregado numa cruz de madeira e ficado perturbando o restinho de vida dele até que ele não mais resistisse, ele havia nos perdoado “pelas nossas ofensas” e mostrado que ia limpar nossa barra com seu Pai, pessoalmente.

RECOMEÇO
A segunda-feira depois da Semana Santa era como a volta de férias numa fazenda bem tranqüila, com direito a ouvir música de boa qualidade, pescar despreocupadamente em um “barreiro”, conversar de verdade com as pessoas mais próximas da gente e fugir um pouco das traquinagens da gurizada. Depois da lembrança da história daquele cara que “se lascou” pra mostrar o quanto podemos ser bons, de sentir o pesar pelo seu sofrimento e o alívio pelo seu perdão, estávamos todos prontos pra retomar a vida e o fazíamos com o coração revigorado, a cabeça fria e o corpo mais saudável.

FIM
O tempo foi passando e fomos vendo, pouco-a-pouco, uma mudança lastimável no “evento” Semana Santa. A indústria, em sua insaciável sede de crescimento, e o comércio, com seu famigerado “tesão” por movimento, vendas e lucro, a desvirtuaram completamente, transformando-a em mais um monstrengo mercadológico, que não serve para nada que não seja nos fazer gastar dinheiro.

VIA CRUCIS
Depois de muito bater pernas, em busca do bacalhau mais em conta, do peixe menos fedorento, do vinho que provoca menos ressaca e dos temperos e acompanhamentos que transformarão esses produtos em refeições que vão nos empanzinar, embriagar e engordar, é nas infindáveis filas dos supermercados que sofremos para conseguir trazer para nossas casas o “clima pascal”.

COELHINHO
Bem parecido com o que já fizeram o Papai Noel, suas renas, pinheiros, bonecos de neve, bolas coloridas e lâmpadas pisca-pisca, o tal coelho da Páscoa desbancou Jesus na parada de sucessos da Páscoa. Parece mais óbvio e menos trabalhoso aos gênios publicitários das multinacionais do cacau promover a imagem de um bichinho branquinho (sim, porque a Páscoa é racista e coelhos que não sejam claros estão fora), peludinho, fofinho, cheirosinho, dentuço e sorridente do que a de um homem magro, sujo, fedorento e ensangüentado.

CACAU
Há alguns anos o chocolate, bem como o iogurte, o leite em pó ou o refrigerante, não eram tão acessíveis quanto hoje. Agora ele – o chocolate – é o responsável por milhares de empregos no campo, nas fábricas, nas distribuidoras, nas lojas e nos supermercados, onde aquelas garotas e rapazes com suas pochetes cheias de bugingangas nos atendem com presteza e sorrisos e nos demonstram as diversas maneiras, em cores, tamanhos e sabores, de fazer esta semana mais doce e de como podemos fazer a média com o mundo.

MOEDA
O ovo de páscoa garante a criança mais quieta, a esposa mais gentil, os namorados mais carinhosos, os funcionários mais atentos, os amigos mais presentes e até a professora da escola mais atenciosa. Dar um ovo de páscoa simboliza que somos diligentes e zelosos com as pessoas das quais desfrutamos a amizade e a convivência. Também é, hoje, mais uma entre tantas formas de competição social, onde quem dá mais, tem mais retorno.

COTAÇÃO
Dar um ovo de número 15 significa que gostamos de alguém. Dar um ovo de tamanho 23 significa que aquela pessoa é muito especial. Dar uma cesta de Páscoa, com vários ovos de diferentes tamanhos, coelhinhos de chocolate, barras, bombons e até uma colomba – bolo que pretende ser o panetone da páscoa – é o mesmo que entregar o nosso coração em uma caixinha de papelão cor-de-rosa, enrolada com fita vermelha.

PIRANGAGEM
Agora se for pra dar ovo com numeração de nove abaixo, talvez seja melhor não fazê-lo, para não parecer que odiamos aquela pessoa e só estamos querendo demonstrar uma certa comiseração. Pode também parecer que estamos dizendo-lhe ser gorda e que estamos colaborando com a dieta. Ou, finalmente, que estamos falidos e que não deu pra comprar nada “melhorzinho”.

MARCAS
Há ainda a questão das marcas. Nestlé, Garoto e Lacta ainda são as que têm 100% de aceitação, sem falar em algumas, importadas ou de fabricação artesanal que são comparadas a obras de arte pelos mais abestalhados. Oferecer um ovo que não seja destas marcas pode significar outro sintoma da já falada “pirangagem” e dar a alguém um ovo daqueles caseiros, feitos com aquele chocolate baratinho da loja de festas e embalado com aquele papel genérico pode render um sorriso insosso e um muito obrigado em que não se percebemos nem que a boca do presenteado se abriu.

MODELOS
Como não bastasse a grife da fabricação, todo tipo de “personagem” agora tem o seu ovo. Não basta mais o ovo com o gosto daquele chocolate que você adora, tem que ter a embalagem nas cores e com as imagens do personagem do desenho animado ou do filme de sucesso, além, lógico, de conter no interior do ovo a “surpresa!” inspirada no personagem.

BUGINGANGAS
Surpresa é modo de dizer, porque o mais comum é procurar aquela mocinha linda para nos demonstrar a surpresa em todos os detalhes, justamente para que não tenhamos uma surpresa frustrante e o revendedor ou a fábrica não tenham surpresas desagradáveis com a insatisfação de consumidores buscando “trocar surpresas”. É um moído...

PÉSSIMO GOSTO
Muito embora algumas fábricas tenham entre os personagens que “assinam” seus ovos (ficou estranha a frase, mas é o jeito) figurinhas doces como a Moranguinho ou o Bob Esponja, há lançamentos completamente sem noção, como o ovo de páscoa do “motoqueiro fantasma”, onde o personagem-assombração figura sobre uma moto com sua cabeça de caveira em chamas. O brinde é um espécie de disco que sugere poder ser utilizado como arma! E tem a Hello Kitty, que provocou em mim uma dúvida clara: como ela comeria chocolate, se não tem boca?

ENFIM...
Essa páscoa vai ser triste para mim. Não tem mais Tchaikovsky tocando no rádio, não estou mais proibido de falar palavrões e nem precisei lavar apenas os pés antes de dormir. Talvez me convidem para um churrasco na sexta-feira santa e a tv exiba aquele filme policial onde um serial killer também come carne, humana. Na segunda-feira o comentário dos colegas vai ser o “arrastão” da Micarande, o forró na cidade vizinha ou a indigestão provocada pela mistura de bacalhau, cerveja e chocolate.

LEMBRANÇA
É quase certo que ninguém vai lembrar daquele cara magro e feio, que foi traído, julgado, açoitado, crucificado, torturado até a morte física e que ainda voltou pra tranqüilizar a gente antes de ir de uma vez para um lugar que imagino como se fosse aquelas plataformas que tem nas praias, com o letreiro “guarda-vidas”.

ÚLTIMAS PALAVRAS
Se fosse hoje em dia, eu imagino o que ele teria dito antes de ir: - Tá beleza! Não esquentem não que eu já falei pro meu Pai que vocês não tiveram culpa das besteiras que fizeram comigo. Tô indo agora conversar com Ele sobre a minha estada aqui e vou ficar por lá, cuidando de vocês. Mas se liguem, pra daqui a dois mil anos Ele não ter que ficar escutando vocês chamando por Ele porque o bacalhau tá caro, a fila tá lenta e os ovos de chocolate estão todos quebrados.

BOA PÁSCOA A TODOS, NO QUE LHES SIGNIFICAR “BOA PÁSCOA”!!!

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