segunda-feira, 7 de maio de 2007

1, 2, 3. MICARANDE OUTRA VEZ!

DESAFIO
Essa história de escrever coluna – por mais esporádica que seja – em um portal de sucesso e prestígio como o iparaiba traz consigo uma responsabilidade que é inerente a qualquer um que se atreva a militar na parcela mais importante da imprensa, na qual se inserem hoje, com grande destaque, os bons portais de notícias.

ELA DE NOVO
Ao usar como tema de duas colunas passadas a Micarande, nas quais expressei críticas ao evento, suscitei algumas reações inesperadas, não que eu duvidasse da alta e qualificada audiência do portal, mas porque não sabia que tanta gente se dava ao trabalho de ler o que escrevo.

BOAS E MÁS
As reações boas são sempre as mais fáceis e prazerosas de ouvir (e ler). Nelas recebi de pessoas conhecidas, ou não, reflexões a respeito do tema, concordando, pelo menos em grande parte, com minhas opiniões. Algumas más reações são dignas de todo o respeito, quando baseadas em opiniões firmes ou fundamentadas em dados inegáveis. Estas também vieram e foram ouvidas (e lidas) com muita atenção.

DESAFIADORAS
Mas há os desafios. Vindos de várias pessoas que me perguntaram se, já que eu estava criticando, por que não sugeria o que seria viável no caso do fim da Micarande. Passada a festa procurei “ficar na minha”. Muita gente criticando, muita gente defendendo e eu calado (de dedos quietos), pois já tinha escrito tudo o que tinha a dizer.

E AÍ?
Mas até agora algumas pessoas que teimam em ler o que escrevo me perguntam se a Micarande confirmou mesmo o que eu previa e, em confirmando, o que eu achava que deveria ser feito. Até recebi um e-mail de um cidadão que me parece muito lúcido e se declara completamente apartidário propondo-me que divulgue minhas idéias para ver se alguma das instituições que defende o fim da Micarande a transforma pelo menos em um projeto para ser discutido publicamente.

ENTÃO TÁ!
Sendo assim, deixando de lado a minha vontade de não mais falar do tema, até para não ser mais acusado de servir a quem não me serve, vou tentar aqui expor de forma simples e sem muitos rodeios o que vejo como solução para o que interpreto ser o ocaso e, por conseqüência, inevitável fim da Micarande.

CÂMBIO
Da última vez em que versei sobre o tema fiz questão de enfatizar que não defendo o fim, puro e simples, do nosso carnaval temporão. Acredito na possibilidade de que venha a ser a maior marca do governo de Veneziano não a extinção da Micarande e sim a criação de um novo evento, mais moderno, abrangente, cultural, democrático e com maior potencial de tornar-se perene.

ÉPOCA
Para começar, acredito que a Micarande é meio fora de época mesmo, senão vejamos: no primeiro semestre a agenda de Campina tem os grandiosos eventos “sagrados” e “profanos” do carnaval, logo em seguida já vem a Micarande e depois o São João. Já no segundo semestre contamos com o valioso Festival de Inverno e só vamos ver algo grandioso novamente nas festas natalinas. Agosto, setembro, outubro e novembro na maior morgação...

PARABÉNS
No aniversário de Campina, que por acaso cai numa data extremamente favorável, pois sempre tem o feriado de Nossa Senhora Aparecida por perto, até hoje não se conseguiu emplacar nada de significativo. Patinamos em vários “eventos de outubro” mas nenhum realmente “fechou de cadeado”. A cidade ainda não tem a festa que merece.

CALENDÁRIO
Pois minha primeira proposta seria justamente esta: a mudança da festa do período de abril para outubro, primordialmente nos dias 11 e 12 de outubro ou, no mínimo, no final de semana mais próximo a eles; e sempre com duração de quatro dias, de preferência de uma quinta a um domingo, exatamente como a Micarande.

LOCAL
O Parque do Povo, sem dúvidas! Mas com algumas mudanças estruturais significativas, a começar pela Pirâmide, que nestes dias perderia pelo menos uma parte da sua cobertura para que pudesse ser transformada no palco da festa. Sob o nosso cartão postal seria instalada toda a parafernália de som e luz, camarins, salas de apoio e coisas do tipo.

GRANDIOSO
A exemplo do que ocorre em shows realizados na Praça da Apoteose, a estrutura marcante da Pirâmide já seria uma grande marca do evento, ainda mais com a aplicação sobre a mesma de recursos de iluminação, pirotecnia e, lá embaixo, de um enorme palco giratório, também comum em vários eventos da mesma natureza.

PLATÉIA
Os espaços para a platéia seriam três. O primeiro e sagrado seria o chão calçado do vão central do Parque do Povo, onde o povo ficaria à vontade para acompanhar a toda programação de forma privilegiada. O segundo seria uma grande plataforma, junto ao Centro Cultural, onde seriam instaladas centenas de mesas de pista, com serviço de restaurante, para o pessoal mais “família”. Finalmente, camarotes, instalados no mesmo lugar onde o são na Micarande, para acomodar autoridades, convidados de empresas, patrocinadores e festinhas particulares de colunistas descolados.

IMPRENSA
Confortavelmente instalados na sacada do Centro Cultural, os órgãos de imprensa poderiam fazer sua cobertura tranqüilamente e para acesso aos demais locais da festa eu me atreveria a propor a construção de um túnel de serviço que ligasse o Centro Cultural aos camarotes e à Pirâmide. Túnel este que, aliás, também seria muito útil durante o São João.

ACESSO
Para garantir ao evento segurança e PAZ, a arena central deveria ser cercada, como acontece no Natal, e só poderiam entrar as pessoas que passassem pelos detectores de metal instalados e que apresentassem um documento de identidade a um sistema que capturasse suas imagens. Este sistema também já existe, mas eu garanto que ali na UFCG tem gente que desenvolve um melhor.

ARRECADAÇÃO
Eu até sugeriria que a entrada do “povão” fosse condicionada à doação de um quilo de alimentos, mas como os famintos também têm sede de cultura outras formas de captação de doações podem ser estudadas, por exemplo, como a troca de alimentos por camisetas para uma “área vip”, ali pertinho do palco, no “gargarejo”. Seria um “Laranja Cravo” parado – e lotado.

PROGRAMAÇÃO
Pronto, temos a arena, o palco, as mesas, os camarotes, as cabines, o túnel... Mas e as atrações? Como fazer com que a festa não sofra do mal da Micarande, que passa por mal bocados sempre que o axé entra em crise ou que suas maiores estrelas “se confundem” no agendamento de seus compromissos? A resposta é MODA E TRADIÇÃO! O povo gosta de moda. Canta o que está na moda, dança o que está na moda, mas também há músicas e artistas que não saem de moda nunca. Este balanceamento seria o diferencial do evento, pois que ele seria público e, portanto, não completamente dependente do mercado.

SUPOSIÇÕES
Exercitando um pouco de criatividade e conhecimento do mercado do show-business, poderemos aqui brincar um pouco de propor algumas situações, com cinco momentos diferentes e musicalmente temáticos. Consultando o calendário e verificando que este ano o aniversário da cidade cai na quinta e o feriado das crianças na sexta, eu poderia visualizar o que seria interessante para uma primeira edição do evento.

QUINTA-FEIRA (11/10)
No aniversário da cidade, véspera de feriado, eu imagino uma noite de abertura mais tradicional. MPB! Começando a noite, as estrelas da nossa música local. Kátia e Gabimar, Tony Dumont, Fidélia Cassandra, Tan, Fábio Dantas e tantos outros, juntos, em um show de celebração à cidade. Logo depois, quem sabe, Djavan, Milton Nascimento, Emílio Santiago, Ana Karolina, Zeca Baleiro, Maria Betânia, Caetano, Gil ou Ney Matogrosso? Um destes seria ótimo. Dois ou três seria um estouro!

SEXTA-FEIRA (12/10) – TARDE
Dia das Crianças merece programação especial. A tarde seria delas, quem sabe com a volta da “talentosa” Kelly Key, junto com seu “ex-amor” Latino. Ou a Turma do Didi, quem sabe. Talvez ano que vem, num sábado, pudesse ser Xuxa!

SEXTA-FEIRA (12/10) – NOITE
Sexta tem cara de boate! E o Parque do Povo poderia ser transformado em uma neste dia, com a presença de alguns deejays nossos, como a galera do projeto Maquinaria, e outros, da pesada, que animam as pistas mais animadas do Brasil e do Mundo, além daqueles artistas que fazem ferver ao vivo, como Edson Cordeiro, Ed Motta ou o bom e velho Benjor! É pra se esbaldar...

SÁBADO (13/10)
O sábado é pop! A festa começaria com as nossas estrelas rockeiras, como HiJack, Senhoritas, Cabruêra, Artigo 5º e outros tão bons quanto. E pra levantar poeira uma mistureba com pitadas de bandas como Jota Quest, Skank, Barão Vermelho, Paralamas ou Kid Abelha, apimentadas pelo suíngue baiano de Ivete, de Daniela, do Babado, Asa ou Chicletão. Quem resiste?

DOMINGO (14/10)
Festa boa acaba no desmantelo! No domingo, pra fechar com chave de ouro, o pop-brega tomava conta do pedaço, com as introduções melodiosas de Inaldo e Paulo Rubens, Naninha e Zezo e o fechamento grandioso de estrelas como Fernando Mendes, Adilson Ramos, o Rei Reginaldo, Amado Batista e Waldick Soriano, por exemplo. Imagine uma presença internacionalmente brega, como Manolo Otero...

SÓ ISSO?
Claro que não. Uma das coisas interessantes desse modelo são as possibilidades de mudanças e adaptações constantes. Noite romântica com Roberto Carlos; de samba com Alcione, Zeca Pagodinho e Jorge Aragão; de Pagode com Inimigos da HP e Raça Negra; de forró (tradicional, eletrônico ou universitário); de ritmos latinos com Calypso e Capim Cubano. O que vejo é uma festa nova, diferente e oxigenada a cada ano.

VIABILIDADE
Mas será que uma festa dessa seria viável? Perguntarão alguns. Partindo do ponto de vista de que a Micarande deste ano, conforme divulgação da Prefeitura, teve 15 grandes atrações, dá que sobra. Mas há outros aspectos que devem ser levados em conta, como a existência de apenas uma estrutura de som e luz e não de dezenas de trios elétricos + um palco; a concentração da festa em apenas um espaço, diminuindo despesas de iluminação pública, segurança, transporte, sinalização e tudo mais; a possibilidade muito maior de negociação com os artistas, pelo evento ser multi-estilo e eles não poderem botar “pé no bucho”.

DESVIOS
E, finalmente, o que considero o mais importante: o Patrocínio! Na Micarande existe um fenômeno lamentável de patrocínio pirata, pois enquanto algumas empresas investem oficialmente na festa, outras, ilegalmente, se aproveitam da impossibilidade de controle para fazer merchandising e realizar vendas de forma alternativa. São bebidas, principalmente, mas também há outros produtos.

VANTAGENS
Numa festa como a que visualizo, com arena fechada e até as cercanias vigiadas, não há outra hipótese de associação de marca ou exclusividade de consumo que não seja “morrendo” com uma boa verba nos cofres da Prefeitura. A própria captação de patrocínios oficiais, em Brasília, seria menos complicada – pelo valor multicultural da festa – e, em se tratando de mercado comercial, desde que feita profissionalmente, seria exitosa na certa.

VANTAGENS II
São inúmeras, mas começam obrigatoriamente pela saída muito menor de grana da cidade. Logicamente os artistas receberão os seus cachês, mas só isso, sem direito a participação em lucros de blocos, aluguel de trios, carros-de-apoio, fabricação de abadás, patrocínios na fonte e outras gulodices financeiras.

VANTAGENS III
Gente bonita e bem vestida representa comércio aquecido. Nada melhor do que quatro dias de festa para vermos as lojas de roupas, calçados, acessórios, cosméticos e outras “necessidades” lotadas; as academias, clínicas de estética, salões de beleza abarrotados; os hotéis, pousadas, apartamentos de estudantes, restaurantes, lanchonetes, traileres e supermercados apinhados de gente. Campina em êxtase!

VANTAGENS IV
Com a transferência da festa para o segundo semestre, não só há um espaçamento maior entre os eventos do calendário, proporcionando maior tranqüilidade – ou menos dores de cabeça – aos organizadores, como, acredito eu, o ano poderia começar em Campina, como em todo o Brasil, depois do carnaval e não da Micarande, que, no mínimo, nos impede de “pegar o embalo”.

DESVANTAGEM
Não considero, mas alguns haverão de suscitar o fato de que a festa acontece em um período de efeverscência política, nos anos eleitorais, precisamente entre o primeiro e o segundo turno, já comuns na nossa Paraíba. Minha opinião é que o povo, a cidade, o comércio e, principalmente, o processo eleitoral não têm nada a ver com isso. Mas, se ajudar em alguma coisa, posso garantir que oferecer uma festança dessa à cidade exatamente nessa época será uma ótima maneira de reforçar a imagem.

É ISSO
Para aqueles que, de certa forma, me desafiaram a apresentar uma idéia subseqüente à minhas críticas, aí está. Para aqueles que criticam a Micarande por verem ou sofrerem os efeitos de sua decadência, espero que possa servir como base de discussão para uma proposta de consenso. E para os que defendem que a Micarande ainda é o modelo mais acertado de evento popular de rápida execução e atração turística para Campina Grande, um abraço!

AH!
E para não dizer que não falei das flores, a programação d´O Maior São do Mundo 2007 tá “pra arrombar”!!!
* O título desta coluna é o slogan da terceira Micarande, criados (o slogan e a festa) pelo "Mano" Lucas Sales.

quinta-feira, 5 de abril de 2007

TÁ TUDO TRONCHO!

INFÂNCIA
A Semana Santa, na minha época de criança, era como se fosse o período “sério” do ano. As pessoas ficavam mais introspectivas, menos expansivas, falavam mais baixo e evitavam qualquer coisa que as fizesse parecer insensíveis ou más.

PROIBIDO
Quando chegava o meio da Semana, quase nada podia. Eu não podia brigar com minha irmã, o som da tv tinha que ser mais baixo, nem todos os discos podiam ser ouvidos e até as roupas, principalmente das mulheres, parece que saiam da moda por alguns dias. Ficavam maiores, mais escuras e mais pesadas, pois elas pareciam estar carregando algo mais que o tecido e as costuras em seus corpos.

TRISTEZA
Era um clima meio triste, onde as pessoas procuravam pensar na vida. Os adultos sempre reservavam algum tempinho para conversar entre eles e com as crianças sobre o que fazia aqueles dias serem diferentes. Em alguns casos era primordial a provocação da conversa pelas próprias crianças, curiosas sobre aquela cara de “preó” dos mais velhos.

FAMILIAR
Não tive muitas perdas familiares – embora as poucas tenham sido grandes – mas estas me fizeram perceber analiticamente o que se passava a cada mês de abril. Era como se alguém da família ou muito próximo tivesse morrido. Meus pais e outros adultos com quem eu convivia agiam como se algum tio não houvesse resistido a algum mal que o tivesse atingido de forma traiçoeira e dolorosa.

AURA
Não era só na minha casa que isso era perceptível, até porque nunca fomos muito fervorosos, mas em toda a cidade, que àquela época era minha inteira concepção de mundo. Na escola, no ônibus, no supermercado, nas casas dos amigos e parentes; em todo lugar tava todo mundo meio baixo astral. Até as rádios – TODAS! – mudavam inteiramente suas programações, algumas começando na quarta e outras só na sexta, mas sempre se estendendo até o domingo.

SELEÇÃO
Aliás, era um dos pontos altos da Semana Santa a seleção musical das rádios. Sou do tempo em que rádio fm era novidade, pela qualidade do som, então era um aspecto meio mágico daquela época o rádio mais novo da casa sempre ligado sobre o banco de cimento do quintal “tocando” as mais belas – e tristes – obras da música clássica. Brahms, Wagner, Lizt, Schumann, Chopin, Prokofiev e outros ilustres desconhecidos, para mim, transportavam-me para outras épocas e lugares, enquanto tentava brincar sem fazer barulho, sem chamar a atenção e sem parecer muito alegre.

MENU
Carne, nem pensar! Frango, de jeito nenhum! Porco, jamais! Peixe, e só. Vindo, basicamente, de João Pessoa ou Boqueirão e comprado na velha feira de peixes, entrando pela Vila Nova da Rainha. Mainha e Lourdes se desdobravam para conseguir criar ou repetir naqueles cinco dias – quarta a domingo, para nós, crianças, que não fazíamos jejum – receitas que quase nunca eram preparadas no restante do ano. E sempre tinha o comentário de alguém, à mesa: - Tá muito bom. Devíamos comer peixe mais vezes!

EXCEÇÃO
A alegria da família reunida em torno dos pratos diferentes era um dos poucos momentos descontraídos da Semana Santa da minha infância. No resto do tempo eu ficava meio “amuado”, pelos cantos da casa, achando meio injusto que não pudesse extravasar minha energia acumulada graças ao feriado escolar. Mas essa era, talvez, a minha única inconformidade com aquela época especial do calendário, porque eu era plenamente consciente do que havia acontecido para provocar aquele luto.

ELE
Pensar no sacrifício, que eu não entendia porque chamavam de paixão, de Jesus naquela época me deixava triste e imaginar as “ruindades” que tinham feito me davam pena dele. Logicamente eu não fazia idéia do sentido real do que Jesus passou, mas só de pensar que eu podia ter alguma culpa por aquilo eu já ficava meio “desconfiado”, como quando algum primo apanhava da mãe por eu ter arrancado as tiras de sua “japonesa”.

PROIBIDO
Não pode isso, não pode aquilo e nem aquilo outro. A Semana Santa, eu acho, era um período de paz para os adultos, que a usavam como desculpa para fazer as crianças se aquietarem; mas, por trás dessa paz estava a oportunidade perfeita para que os casais se tratassem melhor, que os patrões ficassem menos ranzinzas, que as pessoas lembrassem dos amigos distantes e, em plena ditadura, daqueles que haviam sido “levados”, em dois sentidos.

EM RESUMO,
houve uma época, há poucos anos, em que a Semana Santa era um período especial, em que os cristãos, membros de outras religiões não cristãs e até ateus paravam para pensar um pouco na dignidade humana e nos nossos valores individuais e sociais. Afinal, não importava a qual religião pertencêssemos, ou não, tínhamos notícia de que um homem, de carne e osso, como nós, havia sido massacrado publicamente por outros homens, como nós, unicamente por tentar disseminar a paz, a harmonia e o amor entre nós.

SENTIMENTOS
Por pena, culpa, medo ou simplesmente tristeza, todos entrávamos, naquelas semanas, em um estado de permanente reflexão. Mesmo eu, que não entendia direito a moral da história, me pegava, às vezes, agindo como aquele povo do Big Brother, meio se fingindo de bonzinho, porque na Semana Santa parecia que a frase “Deus tá vendo!” tinha maximizado o seu efeito.

PÁSCOA
O final da Semana Santa, no domingo, tinha um gostinho de alívio. A gente tinha a certeza que estava tudo certo, porque, apesar da “camada de pau” que tinham dado em Jesus, de terem-no pregado numa cruz de madeira e ficado perturbando o restinho de vida dele até que ele não mais resistisse, ele havia nos perdoado “pelas nossas ofensas” e mostrado que ia limpar nossa barra com seu Pai, pessoalmente.

RECOMEÇO
A segunda-feira depois da Semana Santa era como a volta de férias numa fazenda bem tranqüila, com direito a ouvir música de boa qualidade, pescar despreocupadamente em um “barreiro”, conversar de verdade com as pessoas mais próximas da gente e fugir um pouco das traquinagens da gurizada. Depois da lembrança da história daquele cara que “se lascou” pra mostrar o quanto podemos ser bons, de sentir o pesar pelo seu sofrimento e o alívio pelo seu perdão, estávamos todos prontos pra retomar a vida e o fazíamos com o coração revigorado, a cabeça fria e o corpo mais saudável.

FIM
O tempo foi passando e fomos vendo, pouco-a-pouco, uma mudança lastimável no “evento” Semana Santa. A indústria, em sua insaciável sede de crescimento, e o comércio, com seu famigerado “tesão” por movimento, vendas e lucro, a desvirtuaram completamente, transformando-a em mais um monstrengo mercadológico, que não serve para nada que não seja nos fazer gastar dinheiro.

VIA CRUCIS
Depois de muito bater pernas, em busca do bacalhau mais em conta, do peixe menos fedorento, do vinho que provoca menos ressaca e dos temperos e acompanhamentos que transformarão esses produtos em refeições que vão nos empanzinar, embriagar e engordar, é nas infindáveis filas dos supermercados que sofremos para conseguir trazer para nossas casas o “clima pascal”.

COELHINHO
Bem parecido com o que já fizeram o Papai Noel, suas renas, pinheiros, bonecos de neve, bolas coloridas e lâmpadas pisca-pisca, o tal coelho da Páscoa desbancou Jesus na parada de sucessos da Páscoa. Parece mais óbvio e menos trabalhoso aos gênios publicitários das multinacionais do cacau promover a imagem de um bichinho branquinho (sim, porque a Páscoa é racista e coelhos que não sejam claros estão fora), peludinho, fofinho, cheirosinho, dentuço e sorridente do que a de um homem magro, sujo, fedorento e ensangüentado.

CACAU
Há alguns anos o chocolate, bem como o iogurte, o leite em pó ou o refrigerante, não eram tão acessíveis quanto hoje. Agora ele – o chocolate – é o responsável por milhares de empregos no campo, nas fábricas, nas distribuidoras, nas lojas e nos supermercados, onde aquelas garotas e rapazes com suas pochetes cheias de bugingangas nos atendem com presteza e sorrisos e nos demonstram as diversas maneiras, em cores, tamanhos e sabores, de fazer esta semana mais doce e de como podemos fazer a média com o mundo.

MOEDA
O ovo de páscoa garante a criança mais quieta, a esposa mais gentil, os namorados mais carinhosos, os funcionários mais atentos, os amigos mais presentes e até a professora da escola mais atenciosa. Dar um ovo de páscoa simboliza que somos diligentes e zelosos com as pessoas das quais desfrutamos a amizade e a convivência. Também é, hoje, mais uma entre tantas formas de competição social, onde quem dá mais, tem mais retorno.

COTAÇÃO
Dar um ovo de número 15 significa que gostamos de alguém. Dar um ovo de tamanho 23 significa que aquela pessoa é muito especial. Dar uma cesta de Páscoa, com vários ovos de diferentes tamanhos, coelhinhos de chocolate, barras, bombons e até uma colomba – bolo que pretende ser o panetone da páscoa – é o mesmo que entregar o nosso coração em uma caixinha de papelão cor-de-rosa, enrolada com fita vermelha.

PIRANGAGEM
Agora se for pra dar ovo com numeração de nove abaixo, talvez seja melhor não fazê-lo, para não parecer que odiamos aquela pessoa e só estamos querendo demonstrar uma certa comiseração. Pode também parecer que estamos dizendo-lhe ser gorda e que estamos colaborando com a dieta. Ou, finalmente, que estamos falidos e que não deu pra comprar nada “melhorzinho”.

MARCAS
Há ainda a questão das marcas. Nestlé, Garoto e Lacta ainda são as que têm 100% de aceitação, sem falar em algumas, importadas ou de fabricação artesanal que são comparadas a obras de arte pelos mais abestalhados. Oferecer um ovo que não seja destas marcas pode significar outro sintoma da já falada “pirangagem” e dar a alguém um ovo daqueles caseiros, feitos com aquele chocolate baratinho da loja de festas e embalado com aquele papel genérico pode render um sorriso insosso e um muito obrigado em que não se percebemos nem que a boca do presenteado se abriu.

MODELOS
Como não bastasse a grife da fabricação, todo tipo de “personagem” agora tem o seu ovo. Não basta mais o ovo com o gosto daquele chocolate que você adora, tem que ter a embalagem nas cores e com as imagens do personagem do desenho animado ou do filme de sucesso, além, lógico, de conter no interior do ovo a “surpresa!” inspirada no personagem.

BUGINGANGAS
Surpresa é modo de dizer, porque o mais comum é procurar aquela mocinha linda para nos demonstrar a surpresa em todos os detalhes, justamente para que não tenhamos uma surpresa frustrante e o revendedor ou a fábrica não tenham surpresas desagradáveis com a insatisfação de consumidores buscando “trocar surpresas”. É um moído...

PÉSSIMO GOSTO
Muito embora algumas fábricas tenham entre os personagens que “assinam” seus ovos (ficou estranha a frase, mas é o jeito) figurinhas doces como a Moranguinho ou o Bob Esponja, há lançamentos completamente sem noção, como o ovo de páscoa do “motoqueiro fantasma”, onde o personagem-assombração figura sobre uma moto com sua cabeça de caveira em chamas. O brinde é um espécie de disco que sugere poder ser utilizado como arma! E tem a Hello Kitty, que provocou em mim uma dúvida clara: como ela comeria chocolate, se não tem boca?

ENFIM...
Essa páscoa vai ser triste para mim. Não tem mais Tchaikovsky tocando no rádio, não estou mais proibido de falar palavrões e nem precisei lavar apenas os pés antes de dormir. Talvez me convidem para um churrasco na sexta-feira santa e a tv exiba aquele filme policial onde um serial killer também come carne, humana. Na segunda-feira o comentário dos colegas vai ser o “arrastão” da Micarande, o forró na cidade vizinha ou a indigestão provocada pela mistura de bacalhau, cerveja e chocolate.

LEMBRANÇA
É quase certo que ninguém vai lembrar daquele cara magro e feio, que foi traído, julgado, açoitado, crucificado, torturado até a morte física e que ainda voltou pra tranqüilizar a gente antes de ir de uma vez para um lugar que imagino como se fosse aquelas plataformas que tem nas praias, com o letreiro “guarda-vidas”.

ÚLTIMAS PALAVRAS
Se fosse hoje em dia, eu imagino o que ele teria dito antes de ir: - Tá beleza! Não esquentem não que eu já falei pro meu Pai que vocês não tiveram culpa das besteiras que fizeram comigo. Tô indo agora conversar com Ele sobre a minha estada aqui e vou ficar por lá, cuidando de vocês. Mas se liguem, pra daqui a dois mil anos Ele não ter que ficar escutando vocês chamando por Ele porque o bacalhau tá caro, a fila tá lenta e os ovos de chocolate estão todos quebrados.

BOA PÁSCOA A TODOS, NO QUE LHES SIGNIFICAR “BOA PÁSCOA”!!!